De todas as distopias escritas no século XX, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, é tida como a mais inquietante e perturbadora. O choque decorre exatamente da inversão de perspectiva. Ao invés de um mundo pós-apocalíptico onde impera a lei do mais forte, o escritor inglês nos apresenta uma sociedade de um futuro hipotético cujo governo suprimiu de tal maneira as liberdades individuais, que a própria felicidade deixou de ser uma meta, valor ou aspiração individual, para se converter em uma obrigação – compulsória e exigível como um tributo.
E para garantir a plena felicidade dos cidadãos desse aterrorizante paraíso artificial, o governo incumbe-se de fornecer doses diárias e gratuitas de uma droga denominada soma – metáfora de toda sorte de manipulação psicológica utilizada para evitar que as pessoas fiquem tristes e, por conseguinte, reflexivas. Enfim, um mundo tão belo e perfeito quanto a vida num comercial de margarina.
Aliás, essa felicidade artificial, alienante, característica de uma sociedade bovinamente conduzida por um governo autocrático, é retratada na adaptação Admirável Gado Novo – uma das mais conhecidas canções do cantor e compositor paraibano Zé Ramalho -, cujo refrão denuncia: “Êh, ô ô, vida de gado/povo marcado/hê, povo feliz!”
Vale lembrar que, em 1932, ano de lançamento de Admirável Mundo Novo, as atrocidades do comunismo ainda não eram conhecidas além das fronteiras soviéticas. Por outro lado, o nazismo só ascenderia ao poder na Alemanha no ano seguinte (1933), levando o terror e a crueldade humanos ao paroxismo. Não obstante, Huxley conseguiu antever a essência do totalitarismo ascendente, revelando-se absurdamente profético ao pugnar que, no futuro, os métodos de dominação característicos da primeira metade do século passado (genocídio, prisão política, militarização, guerras, anexação de territórios, isolamento, etc) seriam substituídos por mecanismos tanto mais eficientes quanto mais sutis – uma forma de dominação indolor e invisível, apta a driblar, portanto, nosso sistema de defesa contra a supressão dos direitos e garantias individuais.
Você quer ser feliz? – perguntam-nos nossos representantes no governo e no parlamento? Sim, respondemos automaticamente. Afinal de contas, pouquíssimos de nós não o desejam verdadeiramente. Mas nesse contrato há uma cláusula implícita que impede o indivíduo de ser livre e feliz ao mesmo tempo. Assim, ao optarmos pela felicidade química oferecida pelo Estado, estamos implicitamente renunciando à própria liberdade individual.
Da mesma forma, esses nossos representantes no governo e no parlamento podem nos perguntar se desejamos mais segurança e proteção no mundo online, não importa se em relação às milhares de mensagens de bom dia no grupo da família, aos conteúdos que acusam o ministro careca de um dia ter advogado para uma conhecida organização criminosa ou às reiteradas afrontas ao aclamado líder político.
Se no universo huxleyano do século XXVI a liberdade individual cede espaço a doses diárias de felicidade, no alvorecer do tumultuado século XXI são a liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento os bens sacrificiais oferecidos em troca de segurança e proteção no espaço cibernético.
Aqui, porém, reside o grande perigo do remédio prescrito no PL 2630/20 (Lei das Fake News). O objeto que se pretende regular, vale dizer, o ciberespaço, existe apenas no mundo da comunicação, resultante da interconexão das redes de dispositivos digitais interligados no planeta inteiro. Assim, por mais que esse espaço virtual ou online represente uma extensão do mundo físico ou offline, ele prescinde da presença física do homem. Aliás, o ciberespaço prescinde de toda e qualquer presença física, sendo a não-presencialidade a sua principal característica.
Mas é justamente essa dualidade entre espaço físico e espaço virtual que tem resultado em interpretações equivocadas no que pertine à observância dos direitos e garantias individuais em ambos os domínios de atuação humana. É como se, por encanto ou bruxaria, a não-presencialidade do espaço cibernético roubasse aos direitos e garantias fundamentais por meio dele exercidos algumas de suas características mais marcantes, como a imprescritibilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade e efetividade.
Com efeito, não importa por quais meios ou de que maneira a liberdade de expressão e o livre pensamento sejam manifestados. Ao Estado compete agir para impedir que tais direitos sejam violados por qualquer autoridade ou norma infraconstitucional, o mesmo se aplicando às garantias constitucionais de intimidade, honra e dignidade humanas.
Ninguém em sã consciência, por exemplo, apresentaria um projeto de lei flexibilizando a inviolabilidade do sigilo da correspondência postal, haja vista que tal proposta vulneraria o artigo 5°, inciso XII, da Constituição Federal. É inconcebível, portanto, uma lei determinando que os Correios exijam de cada usuário a abertura de uma conta individual vinculada a um documento oficial de identidade, e mantenha um arquivo com cópia de cada correspondência enviada, de maneira que possa ser eventualmente apresentada a uma autoridade judicial que a requisite.
O mesmo raciocínio é cabível em relação ao sigilo das comunicações telefônicas. Alguém consegue conceber o cidadão tendo que logar numa conta privada, igualmente vinculada a um documento de identificação, antes de efetuar uma ligação de um telefone público? E quanto ao fato de as operadoras de telefonia serem obrigadas a gravar todas as conversas e mantê-las arquivadas para fins processuais? Um absurdo!
Embora o absurdo salte aos olhos quando aludimos ao sigilo da correspondência e comunicações telefônicas (o mesmo ocorrendo em relação ao sigilo de dados e das comunicações telegráficas), não enxergamos com suficiente clareza o problema ao situá-lo no campo das comunicações telemáticas, sobretudo aquelas que se dão por meio de aplicativos de mensagem como Whatsapp e Telegram.
A par da relativização do princípio da inviolabilidade do sigilo das comunicações telemáticas, há, evidentemente, no projeto de lei em questão, a manifesta violação dos princípios da liberdade de expressão e da livre manifestação do pensamento exercidos através das redes sociais. Em ambos os casos, é despiciendo dizer que impende ao Estado harmonizar os princípios porventura em conflito, sem permitir qualquer violação a direito fundamental.
Em resumo, os direitos na alça de mira do PL 2630/2020 são válidos para todos os povos e em todos os tempos. Mais do que isso, eles resultam ou advêm da própria natureza humana, daí serem invioláveis a despeito da roupagem com que se apresentem, da dimensão em que se manifestem ou das ideias que veiculem.
Reprimir os abusos praticados através da internet é, indubitavelmente, dever do Estado e responsabilidade de todos os cidadãos. Mas, de todos os caminhos possíveis, a criação de uma Gestapo digital é o menos recomendável.
Paulo Márcio Ramos Cruz
Delegado de Polícia Civil e Secretário-Geral da Democracia Cristã de Sergipe